Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

sábado, 19 de setembro de 2009

O FALCÃO MALTÊS, O LIVRO

É comum que se afirme que O falcão maltês, de Dashiell Hammett, publicado em 1930, é o mais célebre romance policial do século XX, e um dos mais importantes desde que o gênero foi inventado por Edgar Allan Poe, Balzac e mais dois ou três escritores. Mas é raro que alguém esmiuce depois os aspectos que o colocam neste patamar. Um dos mais importantes é que não há, por parte do autor (ou narrador), nenhuma intenção de nos fazer crer que estamos diante de uma trama policial. Diferentemente dos clássicos do gênero, nos quais um crime (em geral, assassinato) é cometido por alguém e precisa ser desvendado pelo detetive, em O falcão maltês os crimes só acontecem depois que o detetive entra na história. Nesse sentido, o crime é apresentado como consequência das relações da vida, e nesta se compreendem: o dinheiro, a ambição e a mentira. Sem dúvida os motores da narrativa. Quando se diz que Hammett criou o romance noir, e O falcão maltês é talvez o seu marco, não é por acaso ou gratuitamente. Os elementos que movem o gênero estão presentes de uma forma bem cristalina: um objeto que se deseja e que vale muito dinheiro, a mulher bela e fatal que vai enredar o protagonista (Sam Spade, detetive particular), a intrincada rede de fatos, intrigas, bandidos e mentiras que constituirá o desenvolvimento da trama e o desfecho, menos firmado na solução dos crimes que na oportunidade do protagonista mostrar o quanto seus valores são maleáveis, consequência da experiência vivida e da necessidade de continuar a viver, e é neste ponto que ele expressa sua visão de mundo, pouco ortodoxa (pois o amor não conta muito) e vazada de ironia: "Vou entregá-la à polícia. É provável que você saia da prisão ainda em vida. Isso significa que estará de volta daqui a vinte anos. Você é um anjo. Vou esperá-la. (...) Se a enforcarem, vou sempre me lembrar de você". Tudo isso virou modelo e foi repetido, com variações, à exaustão, transformando O falcão maltês no antípoda do relato policial clássico, de enigma. O mais importante não é o crime, nem a solução do crime, mas as relações que o movem, as relações que se criam do crime e para a concepção do crime, as nuances psicológicas, a mentira como expediente perfeito para se sobreviver e que expõe a sociedade humana, em corpo e essência. Podemos chegar a dizer que esse é um romance de mentirosos. E, se há alguma verdade entre eles, ela é tão-somente a possibilidade de uma mentira. Até o falcão maltês, o objeto ambicionado por todos durante toda a história, é uma mentira. Mas, para quem acredita em linguagem cifrada, ou em códigos capazes de solucionar uma trama bem construída, aqui está a dica, a fala de Brigid O'Shaudhnessy, a mocinha fatal da história, que diz para Spade: "Se você me amasse, não precisaria ter mais nada no outro prato da balança". O que ela está dizendo, o que ela não está dizendo? Talvez que o falcão original, uma relíquia preciosa, está em seu poder e que, se ele não entregá-la à polícia, viverão felizes no amor e com dinheiro. Mas Spade não é otário. Ou é.

Um comentário:

Hitch disse...

Impele urgentemente sua leitura. Desse manancial de desmitificações, sobra o leitor, ou o que restar dele. Aquele abraço.